terça-feira, 29 de outubro de 2024

Cicatrizes




Cuidado ao tocar uma mulher ferida

Ela foi mutilada 

No corpo e na alma, torturada

As cicatrizes sangram por vezes

E a casa há tanto estruturada 

Em um breve momento vem a desmoronar

O jardim de suas raízes arrancadas 

Ela não pede 

Nem ao menos percebe 

Mas as marcas estão lá 

E frágeis como pétalas de rosas

Caem ao toque do vento

Portanto tenha cuidado ao lhe tocar 

Ela não sabe mais amar

Ela não tem feridas só no corpo 

A alma também é machucada

Ela seguiu em frente porque era preciso 

Lutou com monstros interiores 

Que lhe assombram em pesadelos 

Serviu de cobertor

Para que outros não sentissem o frio de sua alma nua 

Não a machuque

Ela vestiu-se de coragem 

Podou as ramagens

Tapou as cicatrizes

Perfumou com folhas de anis

Mas não se engane

A dor ainda vive ali!


Jussara Rocha Souza

Utopia




Coloquei no mar

Meu barco de papel a navegar

Deixei ele a vagar

Por noites escuras a velejar

Nele carregava meu pranto 

Um triste canto 

De uma menina de cabelos brancos

Que deixou naquele banco

Um jovem senhor

Motivo deste amor

E como o barquinho de papel 

Navegou para um mar de estrelas

Lá bem longe, ao infinito 

E nunca mais voltou

Em noites estreladas

Volto meus olhos aos céus 

E busco teus olhos a me espreitar

Minha alma então pranteia

Te parece utopia 

Para mim é fantasia

Que minha alma permeia.


Jussara Rocha Souza

O dia acordou saudade




O dia acordou saudade

Aquela que aperta, dói e assim mesmo trás felicidade

Saudades do meu amor

Saudades do que se foi e do que ficou

Saudades do que não fizemos

Da vontade dividida

Do amor proibido 

Que um dia no passado havíamos vivido

O dia acordou saudade

Batendo forte na porta do coração 

Sabendo que não irás voltar

Que vives no infinito, na imensidão 

Hoje é só eu e a saudade

Te encontro no rosto de outras pessoas nas ruas da cidade

Na canção que ouço no rádio 

No casal apaixonado na novela

Hoje o dia acordou saudade

E as lágrimas teimam em não querer parar

És fruto de minha dor

Da minha triste existência 

Do amor que serviu de experiência 

Para que eu saiba que nosso amor era para a eternidade!


Jussara Rocha Souza

Elegia




Silêncio seu moço 

Que a vida está osso

O amor vai morrendo 

Os sentidos empobrecendo


Tudo parece normal

O cruel é banal

Eu não me conformo 

E então morro


Morrerei de qualquer maneira

Sem eira ou nem beira

De fome, amor ou educação 

 As mãos amarradas da corrupção 


Silêncio seu moço 

Falar é corda no pescoço 

Foi suicídio diz o jornal

Suicidou-se com as mãos do Sr mal


Hoje se morre todos os dias

Sangue, celular e fotografia 

Celebrando a elegia

Morre o poeta e a poesia!


Jussara Rocha Souza

Não fui preparada para a morte

 Não fui preparada para a morte



Eis-me aqui

A ferida aberta

Da noite escura

De terrores descoberta


Eis-me aqui

Ferida cicatrizada

Nunca esquecida

De dores supurada


São versos doídos 

Do medo construído 

Da dor da impunidade

De quem bate e é absolvido 


Sou náufrago 

Resgatado do mais profundo oceano

De águas escuras e lamacenta

Que extinguiram minha essência 


Fui então presa

De abominável criatura

Matou a vida, doente

Roubou minha doçura 


Me dizem para esquecer

Como? se a ferida sangra

E o sangue ainda sinto escorrer

Desculpe, se não quero ser forte


Não fui preparada para a morte!


Jussara Rocha Souza

Jardim da alma




Entrei com passos silenciosos 

A casa parecia vazia

Havia pequenos rasgos

Algo lá dentro ainda feria


Cuidei para não machucar

Mas confesso havia intenção 

Não queria te assustar

Apenas ganhar teu coração 


O temporal tinha feito estragos

Agora qualquer tempo é tempestade 

A dor sorvida aos tragos

Causou deformidades


Passos meticulosos 

Um olhar doce

A vida querendo gozo

Talvez ainda precoce


Então fui embora de mim

Quem sabe em outra primavera 

Talvez esta dor tenha fim

O passado seja quimera 


Retiro-me

Passos silenciosos 

Devolvo meu ser a mim

Já posso cuidar de meu jardim!


Jussara Rocha Souza

Será a chuva?




Estas paredes lilases

Testemunha de risos e amores

Em um cômodo vazio

Corre o tempo

Lento como um rio

Móveis imaginários 

Feitos em desenhos de giz 

Em paredes segregadas

Batia um coração feliz

As violetas na janela

Espiavam os moleques na calçada 

Bola, amarelinha, pedras nas vidraças 

Um olhar furtivo

Amores inocentes

Balas de anis

No sótão gemem os amantes

Minha musa

Que se despe de virtudes

Lhe tiro a blusa

Entre tintas e pincéis 

Barriga vazia

E a melodia!


La Boheme.... Lá, lá, lá...


Jussara Rocha Souza

Solidão de sentimentos

 



Vivia só 

Não a solidão de um ser sozinho

Era a solidão de sentimentos 

Daqueles que se perdem com o tempo

Como no temporal em busca de abrigo

Na casa destelhada 

Fingindo estar acolhida 

Se sentia vazia

Triste

E a cada dor algo se desfazia dentro de si

Então compensou a solidão 

Com arrumação 

Arrumava casa noite e dia

Mas depois viu que esta não arrumava coisas do coração 

Então para cada dor, ela de objetos se desfazia

Até que a casa então ficou vazia.


Jussara Rocha Souza