segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Mini conto

Quando o câncer já nasceu na alma

Estava morrendo, sabia disso. Embora o corpo desse mostras que era o fim, o cérebro não queria aceitar, se recusava a morrer.
A morfina já começava a dar mostras de seu poder, bendita morfina, pelo menos conseguia dormir sem sentir dor. Eu ficava banhado de suor e confuso, me perdi dos dias e um medo absurdo começou a habitar meus pensamentos. Vejo pessoas em minhas alucinações, pessoas que choram, riem, pedem explicações, fecho os olhos forte, elas têm que sumir daqui.
Queria que tudo acabasse rápido, pedi a Deus ou quem sabe lá que me levasse de uma vez, mas quando sentia ela se aproximar desistia imediatamente de meu pedido e pedia para viver.
Ouço vozes na sala ao lado, risos, barulhos de pratos, há muito perdi o paladar. Meu neto entra correndo no quarto na sua inocência nem imagina meu estado e eu, onde estava eu?
Que em minha arrogância não aproveitei minha família, hoje choro por saber que não verei mais meu neto correr cheio de alegria por este quarto vazio.
Minha boca está seca, as moscas rondam meu corpo em busca do fim, não tenho forças nem para abana-las de mim, minhas mãos sempre tão ágeis hoje mal conseguem acenar, socorro, socorro, me tirem daqui.
Não mais me reconheço, não sou mais dono de mim, alguém me vira de lado, trocam fraldas, aplicam injeções, eu odeio injeções. Eu odeio vocês, eu odeio esta condição , queria pedir perdão, mas se eu ficasse bom se pudesse voltar ao tempo, será que eu mudaria minha posição?
Não consigo ter bondade em meu olhar, estão rindo de mim, eu tenho medo, está escuro, é  o fim.
Um riso brota no canto da boca, sarcástico, vocês não irão me ver morrer, não irei dar este gosto a vocês.
O câncer é apenas a doença que corroeu este meu já espírito canceroso e nada pode ou vai modificar isto.

Jussara Rocha Souza

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