sábado, 20 de julho de 2024

A máquina de costurar sonhos.



O som da máquina de costurar de minha mãe ainda o ouço em meus ouvidos, ele me segue, vem costurando o tempo, rasgado pelas vivências.

A máquina ficava na varanda onde eu dormia em uma cama de armar, no escuro eu ficava imaginando a máquina funcionar e as histórias das peças de roupas que minha mãe costurava.

Certas lembranças ficam na mente das crianças, umas alegres, outras nem tanto. Na minha, ficou o barulho da máquina a preencher o vazio de uma infância vazia, trabalhei desde os onze anos de idade.

Morávamos em um chalé verde-claro com alpendre na frente, havia um banco no qual meu pai passou várias noites após chegar tarde em casa e minha mãe o proibiu de entrar. Depois de um tempo de sono no banco, a mãe o perdoava e eu o via de minha cama passar pé por pé para o seu quarto.

Meu pai, homem honesto, trabalhador, um sonhador diante de uma realidade dura, um romântico forjado a ferro e fogo, casado com a pedra a qual ele tentou forjar uma vida inteira.

Com ele aprendi o valor de um caráter, da palavra dada e da realidade dos amores que não podem ser vividos, apenas guardados no coração. No qual repudio.

Às vezes me ocorre que minha mãe costurou o coração de meu pai naquela máquina de costura, deixando-o preso em pontos cruzes em algum retalho.

Eles eram como o feijão e o sonho, ainda caminho em noites escuras por dentro do chalé, conheço cada peça, lembro do meu irmão mais velho e seus telefones, fax, rádios, meu irmão era o Professor Pardal(um inventor) juntavam-se ele e meus primos a inventar peças novas, consumir uma erva que minha mãe dizia ser incenso queimando(afinal o menino gostava do espiritual, de meditar) Saudades daquele tempo, éramos cópias dos manos mais velhos, eu era a segunda mais velha, escutávamos suas músicas, cantores, filmes para ser grande como eles.

Éramos seis irmãos, vivendo uma quase ditadura embalados por sonhos inacabados de meu pai que conhecia quando ele bebia, uma mãe dura, fria que talvez tenha sucumbido por não ser parte nos sonhos de meu pai. Ela devia sofrer muito e acabou por endurecer.

Lembro de um dia em que meu pai foi me bater, eu tinha realmente tirado ele muito fora do sério, tirou a cinta das bermudas e então ela desceu até os joelhos. Então, ele, furioso com as calças na mão, teve que sair do quarto e eu caí na risada. Eu apanhei muito, umas merecidas, outras não, nunca me acostumei a costurar sonhos, mas hoje entendo ele, e meu pai fez de mim uma poeta, com o coração carregado de emoções, sentimentos e sonhos. Lembro de um almoço em que todos comiam silenciosos, eu sentei ao lado de meu pai e falei _ Ele vai voltar! Levei um tapa no rosto que tirou sangue de minha boca, saí da mesa sem almoço e com um sorriso no rosto..

Eu fui uma revolucionária em uma casa de pais ditadores, fugi quatro vezes de casa, dormi muitas vezes sem comer, fui posta para fora com minha cama e pertences no meio da rua, mas fui eu, eles precisavam fazer de mim uma delas e isso eu não queria. Mas sabe, em certas coisas eles tinham razão, mas não me arrependo de nada, quem morou na mesma rua que eu, sabe que deixei meu nome marcado naquele lugar.

Uma jovem repleta de ideias, alegria e diabruras, o mundo era pequeno e os meus sonhos, minha mãe não conseguiu costurar, ainda os alinhavo, mas fechar costura não é comigo.


Jussara Rocha Souza.

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